A Luz de Eduardo Serra
Conheci o Eduardo Serra em 1990, em Macau, quando fui o seu segundo assistente de imagem na rodagem do filme Amor e Dedinhos de Pé, de Luís Filipe Rocha. A produção era de Tino Navarro e o primeiro assistente de imagem, Amílcar Carrajola. Eram ainda os meus primeiros passos na profissão e, apesar de trazer alguma teoria e prática do Canadá, bem como a experiência do ano anterior nos filmes do Animatógrafo, pouco sabia das artes cinematográficas. Mesmo assim, percebi de imediato que estava perante um diretor de fotografia especial.
O que me despertou foi o seu estilo peculiar de iluminar. Lembro-me de uma cena num quarto pequeno, de paredes brancas, onde havia apenas espaço para a cama onde um personagem, doente, recebia a visita de outro. Não era estúdio, mas uma casa verdadeira, e a cena decorria de dia. Havia uma janela, que nunca estaria em campo. A sequência seria resolvida com dois planos: um aberto, abrangendo todo o espaço, e outro mais fechado a dois. No final a cena acabaria por ser suprimida na montagem.
À partida, tratava-se de uma cena simples de iluminar. A solução lógica — aquela que a esmagadora maioria dos diretores de fotografia escolheria, eu incluído — seria deixar a janela como fonte principal. O resultado dependeria depois da dureza da luz: mais contrastada, se direta, ou mais suave, se filtrada. Mas o Eduardo fez diferente. Fechou a janela, colocou um projetor de 12.000 Watts num canto do quarto, filtrou-o com uma tela difusora de 2x2 que mal cabia no espaço, e desenhou sombras subtis com várias bandeiras negras presas em ceferinos, deixando apenas livre o enquadramento da câmara. Eram tantos os ceferinos que Jorge Caldas, o chefe iluminador, ficou entalado sem conseguir sair durante a cena.
O resultado foi uma imagem dócil, sem sombras pesadas. Uma luz difusa ou refletida tende a achatar o contraste, mas neste caso, graças ao desenho das sombras, o contraste ganhou delicadeza e a imagem adquiriu uma beleza suave, quase melancólica. Esse era o estilo de Eduardo Serra: uma fotografia dócil, suave, melancólica — reflexo da sua própria personalidade.
Eduardo Serra desenvolveu e aplicou uma filosofia própria na sua forma de iluminar. Partia sempre do princípio de que a luz deveria ter origem num ponto justificado dentro do cenário. Podia provir de uma lâmpada, de um candeeiro ou de uma janela, mas nunca deveria ser acrescentada uma fonte sem lógica ou sem correspondência no espaço real. Um dos exemplos mais claros era a sua posição em relação ao contraluz: considerava-o, na maioria das vezes, um recurso artificial, aplicado de forma automática nas técnicas convencionais de iluminação. Para Eduardo, um contraluz só fazia sentido se pudesse ser justificado dentro da cena — vindo, por exemplo, de uma janela ou de uma fonte real de luz. Caso contrário, não deveria ser usado.
Nos circuitos profissionais, Eduardo era reconhecido pela economia de meios: utilizava poucas fontes de luz, preferindo recorrer a uma só fonte forte que depois suavizava — difusa ou refletida —, obtendo assim uma luz delicada, sem sombras pesadas.
No meio francês em particular, ganhou reputação pela forma como iluminava as atrizes, sempre com beleza e suavidade. Isabelle Huppert, com quem trabalhou em vários filmes de Claude Chabrol, mencionou isso em diversas ocasiões, assim como Patrice Leconte, outro realizador com quem colaborou intensamente. Essa qualidade era já evidente desde o início, no filme Sem Sombra de Pecado, de José Fonseca e Costa, quando iluminou Victoria Abril. Nesse trabalho há duas cenas reveladoras do seu olhar para o rosto feminino: uma em que a atriz se maquilha diante do espelho e outra, no café Nicola, onde a vemos através do vidro — cena em que Eduardo usou o sol em contraluz como fonte principal, sem recorrer a qualquer luz adicional.
Mais tarde, em Jude, o filme que o lançou internacionalmente e lhe valeu o primeiro prémio no Festival Camerimage (o Bronze Frog), destacou-se novamente pela forma como iluminou Kate Winslet ao longo das três fases da narrativa. Nesse trabalho, além da luz, Eduardo recorreu à cor como elemento expressivo, atribuindo tonalidades diferentes a cada etapa da vida do casal, reforçando a evolução dramática da história.
Eduardo foi muitas vezes requisitado para filmar obras de época. Como a naturalidade era o princípio da sua filosofia de luz, fazia questão de respeitar a lógica histórica: em períodos sem eletricidade, as fontes luminosas reduziam-se a archotes, lanternas a azeite ou à luz do fogo. Sempre que possível, era assim que Eduardo escolhia iluminar, procurando uma aproximação fiel à realidade da época.
Um dos exemplos mais notáveis dessa abordagem surge em O Judeu, de Jom Tob Azulay. Nas cenas noturnas de exterior, a iluminação provém exclusivamente de archotes e lanternas a azeite. Já num dos interiores, a única fonte de luz é uma pequena janela junto ao telhado — a claridade que entra por ali basta para iluminar o espaço.
Eduardo costumava sublinhar que hoje temos uma perceção muito diferente do que é a noite. Antes da iluminação elétrica pública, as noites eram verdadeiramente escuras. Não havia claridade ambiente. Nos interiores, em particular, a luz era escassa e limitava-se a um ou dois candeeiros a azeite — insuficientes para iluminar plenamente os espaços. Essa consciência histórica era central no modo como construía a atmosfera visual dos seus filmes.
Quando Eduardo foi nomeado pela primeira vez para o Óscar de Melhor Direção de Fotografia, com o filme de Iain Softley Wings of the Dove, destacou-se o arrojo de uma sequência filmada nas ruas de Veneza apenas com archotes e balões de luz. A cena inicia-se com várias personagens a sair de um barco no canal e a atravessar diversas ruas; alguns transportam archotes que, além de pertencerem à ação, fornecem a principal iluminação do plano. O resultado é uma das cenas mais marcantes da sua carreira, e que muito contribuiu para a nomeação.
O uso exclusivo de archotes, cuja luz é instável e irregular por depender da chama, aumentava o risco, sobretudo porque a câmara se aproximava e afastava consideravelmente das personagens sem nunca perder o equilíbrio de exposição. Para enfrentar esse desafio, Eduardo utilizou película de 500 ASA, insuficiente para garantir uma exposição correta, e compensou em laboratório, puxando um stop para elevar a sensibilidade a 1000 ASA. Tratava-se de uma estratégia arriscada, mas que já havia testado com sucesso em O Judeu. A sua forma de trabalhar aproximava-se sempre do limite — se não mesmo da subexposição —, assumindo riscos calculados que resultavam numa imagem de grande força expressiva.
Outra das particularidades de Eduardo Serra era o uso de uma meia Dior aplicada na última lente da objetiva, com o objetivo de suavizar a imagem e retirar-lhe nitidez. Fixava-a na traseira de todas as objetivas com verniz de unhas e, por vezes — com frequência até — colocava-a também à frente da objetiva, como se fosse um filtro, acentuando ainda mais o efeito. Esta solução artesanal substituía os filtros suavizadores disponíveis no mercado, como os Promist ou Low-Contrast da Tiffen.
Igualmente marcante era o seu uso da luz refletida a partir de esferovite branca. Essa qualidade de luz, suave e macia, envolvia os rostos com delicadeza, quase sem sombras, conferindo à imagem uma beleza terna e uma melancolia subtil. Eduardo dominava como poucos esta forma de iluminar com meios reduzidos, mas sempre com lógica natural, respeitando a fonte de luz dentro da cena. Era especialista em manipular a luz para lhe dar a qualidade e a textura que desejava, sempre ao serviço da narrativa.
Ao contrário do que se poderia pensar, Eduardo Serra não aplicava na sua fotografia um estilo barroco, apesar da sua formação académica em História de Arte na Sorbonne. Essa educação moldou o seu olhar e a forma de abordar a luz, mas não o levou a replicar o dramatismo barroco. O estudo da luz nas artes começa a ganhar centralidade no Renascimento e no Barroco, como testemunham Rembrandt, Vermeer e outros que romperam com a rigidez medieval e trouxeram tridimensionalidade às suas obras através de uma representação lógica e natural da luz. O claro-escuro levado ao extremo por Caravaggio, no entanto, estava longe do estilo de Eduardo. Para ele, o contraste deveria ser suave, moldando as figuras de forma subtil e graciosa.
João Mário Grilo, ao referir-se à fotografia do seu filme O Processo do Rei, chamou-lhe “a fotografia de Sua Majestade”: mesmo destituído do trono, o rei não perde a sua dignidade, e Eduardo capta-o magistralmente, numa narrativa situada no século XVI. Embora tenha recorrido a referências pictóricas da época, não recriou essa iluminação histórica de forma literal. Manteve-se fiel ao seu princípio de naturalidade, ainda que, aqui e ali — neste filme e noutros — fosse levado a aplicar contraluzes (como em Harry Potter) ou mesmo a usar luz mais dura, como na sala de tribunal de O Processo do Rei. Mas mesmo nesses casos não se afastava em demasia da estrutura fundamental do seu estilo.
Depois das suas duas primeiras nomeações para o Óscar, Eduardo recebeu convites para trabalhar em produções de Hollywood. Isso levou-o a colaborar em filmes como Unbreakable, What Dreams May Come, Beyond the Sea e, mais tarde, em duas produções da saga Harry Potter, onde se adaptou à tecnologia do green screen. Nestes últimos trabalhos foi, por vezes, criticado por criar uma luz demasiado sombria, mas Eduardo defendia que era a solução mais adequada ao tom dos filmes.
Em What Dreams May Come, na sua segunda colaboração com Vincent Ward, enfrentou uma obra profundamente dependente da pós-produção digital. Ainda assim, registou imagens inesquecíveis, como a passagem pelo inferno em que o protagonista caminha sobre cabeças enterradas em lama — cena em que a luz, densa e aterradora, acompanha a brutalidade do cenário.
Apesar de uma carreira internacional de relevo, Eduardo nunca perdeu a humildade. Continuou a trabalhar com Claude Chabrol, em ambientes de filmagem familiares e tranquilos, onde o fator humano tinha mais peso do que o relógio de produção — um contexto que lhe era natural. Numa dessas rodagens, já em plena filmagem de uma cena, Eduardo interrompeu o trabalho para pedir desculpa e solicitar meia hora adicional: tinha-se enganado na forma de iluminar e queria refazer. Esse gesto resume bem a sua simplicidade e delicadeza no trato.
Por detrás do homem de poucas palavras escondia-se uma personalidade determinada e corajosa. Amante de cinema desde muito jovem, aos 16 anos já assinava críticas na imprensa, na secção juvenil, e foi membro ativo do cineclube ABC e do núcleo de cinema do Instituto Superior Técnico. O cinema, aliado a fatores políticos e pessoais, levou-o a emigrar para Paris em 1963. Um ano antes, tinha participado ativamente nas lutas estudantis contra a proibição do Dia do Estudante, chegando a ser retido durante três dias numa esquadra — ainda que sem prisão formal, ao contrário de alguns colegas. A repressão política e a iminência da guerra colonial pesaram na sua decisão de partir. Munido de um passaporte, raridade na época, integrou-se plenamente em França, aprendeu a língua em profundidade e construiu a sua vida no novo país.
Foi por duas vezes homenageado por Presidentes da República Portuguesa: primeiro por Jorge Sampaio, que o distinguiu como Comendador da Ordem do Infante D. Henrique; mais tarde, em 2017, já com sinais evidentes da afasia que o afetava, foi elevado a Grande-Oficial da mesma ordem por Marcelo Rebelo de Sousa.
Ao longo da sua carreira, sobressaíram não só o talento e a mestria técnica, mas também a gentileza e a humildade. Colegas, realizadores e equipas técnicas recordam a sua disponibilidade para ensinar e partilhar o que sabia. Assumia os erros sem subterfúgios: se algo não corria bem na iluminação, dizia simplesmente “enganei-me” e pedia que se repetisse. Essa simplicidade, aliada à coragem de arriscar, moldou tanto o homem como o artista.
Eduardo Serra deixa um legado ímpar no domínio da direção de fotografia — um exemplo de rigor, humanidade e beleza na arte de iluminar o cinema.
Tony Costa aip
Presidente aip
Associação de Imagem cinema-televisão Portuguesa
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