Este artigo foi incluído no dossier “25 de Abril em 2024: perspectivas das Humanidades” da Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias 43 (2024), 179-189. CHAM Centro de Artes e Humanidades - NOVA FCSH-UAc
O cinema que corporaliza as memórias. Métodos de trabalho colaborativo em Prazer, Camaradas! (2019)
Por José Filipe Costa e Hugo Azevedo aip
O filme Prazer, Camaradas! (2019) rememora a tensa e simultaneamente cúmplice relação de portugueses e estrangeiros, quando partilhavam o seu quotidiano em cooperativas formadas no Ribatejo, em 1975, após ocupações de terras e palacetes na região da Azambuja. Essa rememoração é feita através de dramatizações que tocam em concepções de afectividade, intimidade e sexualidade, nos papéis do homem e da mulher, na emancipação da mulher, na alfabetização com base no método de Paulo Freire, etc. O filme coloca os actores a dramatizarem tarefas agrícolas e pecuárias, assim como serões culturais e bailes tradicionais, sessões de alfabetização e de planeamento familiar.
Neste processo de rememoração, foi essencial filmar em espaços com marcas que activaram recordações, como, por exemplo, o casarão da família Mendia, que em 1975 albergou a Comuna de Aveiras, em Aveiras de Cima, ou a Quinta da Marquesa, uma ruína que fica paredes-meias com a capital de concelho, Azambuja. Outros décors fundamentais foram a aldeia de Manique do Intendente, no largo principal, onde há uma circulação mais intensa dos moradores e os mais idosos conversam e jogam às cartas. Outro espaço fundamental foi o tanque colectivo da aldeia. Este lugar onde as mulheres lavavam a roupa foi propositadamente posto em funcionamento pela Junta de Freguesia de Manique do Intendente para a rodagem do filme. A água correu de novo para os tanques e as actrizes desempenharam o seu papel de lavadeiras, enquanto narravam as suas histórias de amores juvenis, perda da virgindade e a sua relação com os homens.
Antes de passarmos à rodagem de cinco semanas, organizámos dois momentos prévios de casting e trabalho com os actores, com a actriz e encenadora Sofia Cabrita, num espaço cedido pela Junta de Freguesia de Manique do Intendente. Aí aprofundámos cumplicidades que já vinham sendo construídas com os actores, em almoços organizados pelos homens da aldeia ou em passeios ao final da tarde com algumas mulheres. Em todo este processo, António Rodrigues, morador em Manique do Intendente, tornou-se um facilitador nato, ajudando a construir uma teia de relações com vários dos actores locais, quer fosse num dos cafés da aldeia, quer numa confraternização em casa de um seu amigo, também morador em Manique do Intendente. Nesse dia em particular, conversámos, bebemos vinho do Cartaxo e comemos febras assadas sobre o carvão aceso numa lareira.
Nos ateliers dinamizados pela actriz Sofia Cabrita, fizemos germinar mais profundamente esta convivência, que se revelou fundacional para aquilo que é o filme. Há um episódio inesquecível por aquilo que representa de paradoxal: alguns actores e actrizes convidados a participar nestes encontros, declararam-se, logo à partida, incompetentes para participarem num filme. Foi o caso de Cecília Rodrigues, que afirmou objectivamente não ter “jeito” para representar. Não poderia ser mais equivocada esta sua impressão, pois foi ela quem activou, na rodagem do filme, momentos de uma grande inventividade, com uma espontaneidade e uma entrega ímpares, frente à câmara. Por exemplo, na cena da reactivação de um baile tradicional na aldeia, em que ela dança com o marido, António, este aproxima-se demasiado do seu corpo e rouba-lhe um beijo, algo interditado pelas mães que estariam a vigiar os comportamentos das filhas.
No filme, estas mães são evocadas como entidades imaginárias, sentadas no baile, de olhos postos sobre as condutas mais imorais dos casais que dançam. Cecília aproxima-se do ouvido de António e sussurra-lhe frases por ela improvisadas: como a sua “mãe” viu o beijo roubado, conclui que “quem leva depois sou eu”. Cecília modula a voz entre murmúrios, gemidos de amor, culpa e remorso, como se de uma menina de 15, 16 ou 17 anos se tratasse. E fá-lo, sem se ver nela um esforço de representar um determinado sentimento ou uma emoção. Em Cecília não se vislumbra esse labor, essa distância entre pensar em ser algo e actuá-lo. Ela dá-se num acontecer sucessivo.
Muito disto estava em parte previsto aquando da preparação do filme: improvisar, improvisar, improvisar era o seu princípio organizador, mas, paradoxalmente, dentro de um sistema construído, para fazer surgir o tal acontecer num estado nascente: ver o instante em que algo desponta no corpo e nas palavras dos actores, no seu primeiro brilho; fazer da rodagem do filme um princípio detonador da rememoração no presente e ao, mesmo tempo, devotarmo-nos completamente àquele presente. Muitas das ideias que formam, digamos assim, esse sistema construído foram condensadas num documento de trabalho a que chamei “Proposta de plano de ataque: notas sobre o trabalho com os actores” e que foi distribuído a alguns elementos da equipa, como, por exemplo, o assistente de realização, Luís Nunes, e Hugo Azevedo, director de fotografia.
Entre o final de 2024 e o início de 2025, propus ao director de fotografia de Prazer, Camaradas! que dialogasse com este documento de trabalho de 2018, intermediando algumas reflexões sobre como se estabeleceram as nossas relações com os actores e como construiu o trabalho de câmara e iluminação do filme. A vontade e a pertinência deste diálogo derivam da leitura do livro Mundos de Arte (2010), do sociólogo Howard S. Becker, que me parece fundamental para compreender como se faz um filme. Becker põe o acento tónico no trabalho de cooperação entre quem participa na fabricação e disseminação de uma obra de arte. Seguindo o seu raciocínio, um filme não é uma emanação de um ser excepcional que concebe um mundo (por exemplo, o realizador), a que os outros (actores e equipa técnica) dão forma. É algo que surge da cooperação entre os muitos envolvidos nesse mundo construído passo a passo. Comecemos então esse diálogo escrito entre o documento que propus em 2018 como plano de trabalho e as reflexões feitas, hoje, por Hugo Azevedo.
Nota importante: aquele documento conjugava os verbos no futuro, pois foi elaborado como plano de preparação para a rodagem. Neste artigo, adoptarei o passado como tempo verbal, para tornar mais compreensível a minha troca de ideias com Hugo Azevedo.


Proposta de plano de ataque: notas sobre o trabalho com os actores
Revivenciar a memória através do cinema. Tornar o passado presente.
JOSÉ FILIPE COSTA – Mais do que encenar uma situação de forma rígida, tratava-se de criar relações de conforto e cumplicidade entre actores e entre estes e a equipa, para que idealmente se entrasse num fluxo emocional, durante a rodagem, como se estivéssemos numa espécie de estado hipnótico, mas consciente, ou seja, num estado de auto-esquecimento – o oposto ao da reflexão e preocupação – em que o prazer é o grande motivador; não há medo do fracasso; a autoconsciência desaparece; a actividade torna-se autotélica, ou seja, a própria actividade é a recompensa.*
*Vale a pena citar aqui o que Daniel Goleman entende por “fluxo”: “[Fluir] é um estado em que as pessoas ficam absolutamente absortas no que estão fazendo, dando atenção exclusiva à tarefa, a consciência em fusão com os atos. Na verdade, pensar demais no que está acontecendo causa interrupção no fluxo até a idéia ‘como estou fazendo isso maravilhosamente’ pode interromper o fluxo. A atenção fica tão concentrada que as pessoas só têm consciência da estreita gama de percepção relacionada com o que estão fazendo, perdendo a noção de tempo e espaço. […] E, embora atuem no ponto mais alto quando em fluxo, não se preocupam com seu desempenho, com a questão de sucesso ou fracasso – o que as motiva é o puro prazer do ato em si” (Goleman, 2011, 172-173).
Não incutimos nos actores a ideia de que teriam de fazer de conta que vivíamos o passado, mas a ideia era evocá-lo: como se chamássemos os seus fantasmas e nos divertíssemos com eles, conjurando-os e, neste movimento, usando comportamentos e expressões do presente. Era interessante que esta evocação tivesse momentos celebratórios, às vezes doloridos, outras vezes debochados. Por outras palavras, a dramatização de situações não servia para afirmar que a vida em 1975, ou antes do 25 de Abril, era “assim” e que copiávamos o passado. Estávamos era a chamar à lembrança esses tempos, sabendo que o verdadeiro plano temporal existente no qual filmávamos era o presente. O passado era uma memória vivida naquele momento, com a qual nos divertíamos, para o qual também podíamos olhar com distância crítica e humor, interrogando-o e, por vezes, comparando-o com o presente.
HUGO AZEVEDO – Havia que manter, durante todo o processo de rodagem, a ideia inicial de que estávamos a fazer um filme sobre a memória. Não sobre a memória guardada, mas, muito mais difícil, sobre uma memória recriada. O pressuposto era de que os actores tinham de nos mostrar as suas memórias através de actos e nós tínhamos de encontrar formas de as codificar em imagens e sons – criar pequenas metáforas que transmitissem várias ideias de um passado imaginado. Mas isto não significava estarmos presos a uma certa estética do período em causa. Podíamos criar a nossa própria estética, até porque normalmente é assim que a memória funciona: afinal, recordamos sempre o passado tingido pelos acontecimentos do presente.
Não era desajustado dar um aspecto anacrónico a determinadas sequências. Pelo contrário, interessava revelar o artifício, mostrando que estávamos a fazer um filme, porque isso era mais honesto. Por exemplo, na cena que rememora um serão cultural numa cooperativa em 1975, vemos ostensivamente cabos eléctricos espalhados pelo chão a ligarem os projectores que iluminam a cena. No início do filme, os actores falam directamente para a câmara. Não é um problema, pelo contrário: nós estamos ali, com eles. Nós, a fazer o filme, e eles, a relembrar vivências passadas.
Na cena do serão cultural, além de tornarmos visível o uso de projectores e cabos no décor, também aplicamos luzes fluorescentes nalgumas superfícies, não muito diferentes daquelas que usamos nas nossas cozinhas. Não são adereços considerados de filme de época, mas trazem à cena um ar “fora do tempo” e uma ideia visual de que estamos a improvisar, tal como estamos a improvisar no trabalho com os actores. Sublinhamos, assim, que estamos a reutilizar um interior de palacete aristocrático decadente, para um outro desígnio que não aquele a que estava destinado. Esteticamente, o objectivo era construir um espaço escuro, em que as paredes estavam iluminadas, mas os actores não. Eles tornam-se silhuetas, que nos vão contando as suas histórias, como num teatro de sombras.
Mais adiante no filme, há um plano em que dois homens vêem sombras de mulheres projectadas numa tela branca, enquanto passeiam pelo corredor do palacete. O mesmo tipo de sombras dança depois nas janelas do palacete, desta vez visto num plano exterior captado pela câmara. Num qualquer outro filme, buscaríamos esconder o facto de que estamos a recriar a realidade. Neste, esta recriação era exactamente o que queríamos mostrar.
JOSÉ FILIPE COSTA – Assim, os objectivos, à partida, eram: Criar situações dramáticas em que os actores vestissem roupas contemporâneas, em cenários existentes na região da Azambuja (quer fossem casarões ocupados e tornados estruturas de apoio a cooperativas em 1975, quer fossem edificações semelhantes), mas a viver um tempo ficcionado por nós proposto: um serão cultural ou uma assembleia em 1975; a lavagem de roupa no tanque colectivo da aldeia, em 1975; um baile antes do 25 de Abril, etc…
HUGO AZEVEDO – Este lado anacrónico do filme foi o que mais nos libertou, permitindo-nos estar bastante próximos dos actores. Como não havia as grilhetas de manter a verosimilhança, tendo como ponto de referência absoluto o passado, podíamos recriar sem bloqueios. Quando, na cena do baile, o movimento da personagem do Avelino determina a movimentação da câmara, apresentando-me a cada um dos pares que dançam, torna-me parte do baile. Permite-me dançar pelo meio deles, como se fosse mais um, enquanto vai demonstrando detalhes e nuances da vida social reimaginada dos jovens daquele tempo. Mesmo estando atento a todos os requisitos técnicos que tenho de cumprir, consigo fazer com que a câmara dance com eles, porque neste momento da rodagem do filme, a confiança entre nós já estava consolidada. No final da cena, acompanhamos o casal António e Cecília, que se escondem atrás do palco da sociedade recreativa. Aí vislumbramos um momento de intimidade, que eles parecem ter guardado na sua memória por muito tempo. Iluminei toda esta cena com uma luz baixa, com uma tonalidade vermelha, para tornar o momento mais íntimo (ou mais erótico??). E a entrega foi total. Ainda hoje é, na minha opinião, um dos momentos mais bem conseguidos do filme. A confiança foi o elo essencial. O mesmo sentimento está presente na cena em que o grupo de actores dança em torno do solteirão. Cantam uma cantiga. Eu estou lá, com a câmara, no meio deles, e não sinto, por um segundo, que isso os intimide. Parece fácil, mas é incrivelmente difícil.
O uso da câmara à mão, em vez de estar sobre um tripé, também me parecia uma escolha mais ou menos óbvia. Fazia-nos imediatamente regressar aos documentários que nos serviram de referência, como Torre Bela (1977), de Thomas Harlan, com fotografia de Russel Parker, que promovia uma aproximação muito mais rápida aos actores e à cena. Fazer determinada cena para um filme implica imenso trabalho invisível: é necessário iluminar o décor, marcar as movimentações dos actores na cena, ensaiar isto com a câmara. Ou seja, um conjunto de tarefas que podem intimidar um actor, especialmente um não pro!ssional. Neste filme, todos sabíamos que era essencial construir uma relação de confiança entre a equipa e os actores. O uso da câmara à mão retira, precisamente, toda uma camada de protocolos ao que estamos a filmar; a câmara solta permite ter os actores soltos. Enquanto se prepara um novo take, não sou um estranho que os filma à distância, separado do que se passa entre eles. Posso colocar-lhes questões a eles e eles a mim, o que facilita a comunicação imediata e estabelece cumplicidades. Sou um deles; formo um só corpo com eles. Mas não deixo, simultaneamente, de perder o contacto com a restante equipa técnica e com o realizador, que estão fisicamente mais distantes e menos conscientes do que se está a passar no centro da acção.
JOSÉ FILIPE COSTA – Criar o sentimento nos actores de que, durante a rodagem, era possível que algo lhes corresse mal, que alguém se enganasse, se risse, etc., e de que isso constituiria parte intrínseca do filme. Mais importante: deveríamos colocá-los à vontade para dizer algo extemporâneo, como “mas isto não era nada assim naquele tempo; as coisas eram feitas de outro modo”. E isto ficava registado também no filme: as suas dúvidas e interpelações.
Para as cenas de abertura do filme, testámos a seguinte possibilidade: José Rabaça/Maria Eduarda** diziam algo como “a gente vem para as cooperativas para alfabetizar a Carolina, a Maria, apanhar batata, mas também viemos fazer esta grande teatrada para este filme”. Nas cenas iniciais, a Vera poderia dizer em alemão: “sou uma actriz neste filme, etc.”
**Infelizmente, quem é nomeado neste primeiro texto, José Rabaça, faleceu antes da rodagem do filme. A ele lhe devemos muitas das ideias que enformaram o filme. Os seus escritos diarísticos incluem os da sua então esposa, Maria Eduarda, as actas das assembleias, as lengalengas recolhidas nos campos e nas aldeias em redor das cooperativas e até um recado escrito com a mão a tremer de um analfabeto, deixando informações úteis aos outros cooperadores. José Rabaça compilou todos estes registos em três dossiers que são uma fonte inesgotável de surpresas, de reflexões e também de autocríticas.
E onde ficava a história das cooperativas neste método que propusemos?
Muito importante: criávamos condições para entrarmos no contexto vivencial em que experimentávamos determinadas situações dramáticas, não para imitá-las, mas para constituir um reportório, onde se buscava matéria para as improvisações levadas a cabo pelos actores. Para isso foi necessário activar as memórias, nas sessões de preparação anteriores ao filme.
Neste sentido, conversámos bastante com os actores, nos nossos ateliers então realizados nas instalações da Junta de Freguesia de Manique do Intendente. Vimos excertos de filmes de 1975/76 sobre ocupações e a criação de cooperativas noutros pontos do país, para discussão posterior.
Como é que os nossos actores beneficiavam destas conversas e visionamentos?
Foram instrumentos para desencadear lembranças, por exemplo, do vocabulário usado em 1975/76: palavras como “povo”, “cooperativa”, “assembleia”, “patrão”, etc. Ou expressões que lemos ou ouvimos de várias testemunhas: “os militares vêm cá amanhã ajudar-nos”, etc. Tentámos também evocar um ambiente emocional de fricções e tensões sentidas no filme Torre Bela (1977), de Thomas Harlan: gritaria em grupos mais numerosos, pois afinal ninguém sabia o que era fazer uma reunião de trabalho ou uma assembleia na cooperativa. Todos desconheciam como elaborar e seguir uma ordem de trabalhos.
Como lhes explicamos o que seria uma improvisação?
Para entenderem o que era improvisar uma cena, mostramos-lhes o que já tínhamos filmado com Helena [moradora em Manique do Intendente, e que, por circunstâncias da sua vida pessoal, não pôde participar em "Prazer, Camaradas!"] quando ela improvisou o enterro do Entrudo. Este evento, que normalmente ocorre na Quarta-Feira de Cinzas, em Manique do Intendente, foi uma espécie de happening por nós provocado, em 2009, quando estávamos a captar imagens, com Pedro Pinho, para o filme Linha Vermelha (2011). Outra boa analogia para que entendessem a espontaneidade e o repentismo da improvisação foi o uso da expressão cantar à desgarrada.***
*** Na altura, o cantar à desgarrada surgiu como ponto de referência que ajudaria a explicar o tipo de trocas entre os actores numa improvisação. Mas cedo descobri que havia muito pouco para lhes explicar, pois as interacções dramáticas surgiam imediatamente depois do lançamento da situação a filmar. A esta distância temporal (2025), parece-me que os adereços concretos, os espaços apalaçados, alguns deles ocupados em 1975, e muito do que tinha sido partilhado antes das filmagens “falavam” muito mais do que eu e a equipa podíamos “explicar” nos momentos de rodagem.
Estratégias de realização destes ateliers
Hipótese: primeiro começávamos com um grupo mais pequeno, com aqueles que à partida eram os mais sensíveis a este modelo, que identificámos como mais disponíveis, e depois abrimos os ateliers a outros actores, para que os primeiros contagiassem os segundos. Esta primeira etapa com um grupo pequeno também nos ajudou a afinar a abordagem e o nosso método de trabalho.
Nos ateliers, decidimos não experimentar muitas situações semelhantes às que foram filmadas para não induzirmos os actores a repetirem o que já tinham feito, perdendo assim a vivacidade do instante.
Na rodagem, eis algumas hipóteses de criação de situações dramáticas, que nos serviram como referência
Primeira situação: podíamos começar com alguns dos actores que nada sabiam sobre determinada cena, antes de iniciarmos a sua filmagem.
Segunda situação: todos os actores sabiam o que tinham de fazer, as suas motivações, as suas intenções, mas ninguém sabia nada sobre o que o outro ia fazer, para não criar respostas já preparadas e ensaiadas. A ignorância sobre a “vida” das outras personagens era o motor para o trabalho de improvisação, para mais efectivamente surgirem a surpresa e a espontaneidade.
Terceira situação: só alguns actores cruciais é que sabiam o que tinham de fazer, qual era o seu papel, em que momentos deveriam intervir para mudar o curso da situação dramática: por exemplo, o actor que presidia ao comité de trabalhadores propôs, às tantas, que todos os estrangeiros da cooperativa casassem com os portugueses, para assim ficarem legais. Outro exemplo: uma mulher que era contra a presença das estrangeiras na cooperativa ao fim de semana exprimia a sua posição e depois mudava de opinião, etc.
Criar irrupções enquanto os actores estavam a improvisar
Tentámos criar momentos inesperados, por exemplo, um homem estava sempre a vestir e a despir um casaco, uma mulher tinha comichão, alguém trouxera um “caralhinho das Caldas” para o serão cultural e todos deviam beber vinho por ele, etc…
HUGO AZEVEDO – Era importante que o filme não parecesse encenado, pelo menos não demasiado encenado. Tínhamos de conseguir criar um dispositivo que fosse ao mesmo tempo livre e com regras. Isso pode não ser aparente no filme, mas havia muitas regras. Eram regras invisíveis, balizas que nos ajudavam a conseguir os resultados que queríamos, mas não eram regras partilhadas.
Todos os dias de manhã, começávamos com qualquer coisa que nos desse um mote, uma ideia ou um conceito para as cenas que nasceriam nesse dia. Podia ser um poema, uma polaroid, ou uma cena de um filme. Às vezes era uma anedota, como na cena em que o Avelino ensina uma estrangeira a escrever; outras vezes era uma cena de um clássico italiano, como na cena das mulheres a falar com o Paulinho. Acho que o único dia em que não tínhamos nenhum elemento sobre o qual nos basearmos foi um daqueles em que tivemos mais sorte com o inesperado e o imprevisto, porque estávamos a filmar um rebanho de ovelhas, e o pastor ajudou a dar à luz dois cordeiros. Mas, regra geral, tínhamos sempre algo que servia como ponto de partida.
Também me ajudava ter algumas imagens na cabeça que poderiam funcionar como elos de ligação ou desencadear uma cena e, para tal, desenhava-as em storyboards que depois partilhava. A cena em que dois homens entram num palacete degradado, à procura de sexo com as mulheres estrangeiras, é um bom exemplo disso. A cena precisava de alguma delicadeza e humor, mostrando o sexo não explicitamente. Os planos das mãos enlaçadas ou a brincar com o tecido de uma bata feminina, mas que pouco se movem, são como fotografias com algum movimento. Podíamos, assim, criar quadros que sugestionam contactos físicos, até eróticos, sem ter de mostrar o que é óbvio. Uma mulher que aparece em silhueta no fundo do corredor numa tela branca funciona como projecção do desejo dos dois homens que procuram a companhia das estrangeiras, sem ter de o dizer literalmente. A emoção é criada através da sugestão das imagens; a ligação é feita no cérebro do espectador, poupando nas palavras que tudo dizem.
Houve dias de rodagem em que foi bem diferente, como a cena da reunião da cooperativa, incluída na parte final do filme. Aí, foi preciso um plano de ataque muito bem definido. Por essa altura os actores já estavam bastante à vontade e conheciam bem os tempos de rodagem. Sabiam como reter uma ideia, enquanto perdíamos algum tempo para mudar a câmara de sítio ou iluminar outro eixo, e retomar de onde tinham parado como se nada fosse. Só assim conseguimos, com muita planificação, filmar todos os lados e todas as personagens de uma reunião com vinte pessoas, todas com os seus problemas e desejos que precisávamos de registar.
Por fim, gostaria de deixar uma pequena nota relativa à cena final do filme, em que as personagens são apresentadas uma a uma, dançando em frente da câmara. No dia em que o filme foi apresentado no cinema São Jorge, o público acompanhou essa cena com palmas. Vi algumas pessoas a dançar. Claramente aquele final teve um efeito catártico sobre os espectadores. O silêncio da sala de cinema foi quebrado. Poucas vezes vi isso acontecer na minha vida. Acho que merece uma referência para memória futura.
JOSÉ FILIPE COSTA – Para que os actores imergissem nas situações dramáticas propostas, acreditávamos que o melhor seria estarem descentrados de si próprios, da sua prestação, e estarem concentrados nos outros actores/personagens (como nas desgarradas, em que se tem de estar bem atento ao que o parceiro canta, para lhe responder da melhor maneira possível), excepto se optassem por incorporar uma personagem que fosse do “contra” e quisesse ficar isolada num canto da sala.
Bibliografia
GOLEMAN, Daniel. 2011. Inteligência emocional. Rio de Janeiro: Objetiva.
BECKER, Howard S., 2010. Mundos de Arte. Lisboa: Livros Horizonte.
Associação de Imagem cinema-televisão Portuguesa
Fundada em 2 de junho de 1998
Pela Arte e Técnica Cinematográfica
Telef.: +351 911 993 456